01/04/2020

A redução súbita da atividade econômica causada pela adoção da política de restrição da circulação de pessoas (“lockdown”), bem como a redução das trocas comerciais, terá impacto significativo sobre a geração de caixa das empresas em 2020. Como consequência, muitas companhias poderão não ter recursos para honrar seus compromissos. As empresas abertas listadas na B3 estão preparadas para esse momento?

No momento, o analista deve se preocupar basicamente com a solidez financeira das empresas sob sua cobertura. Deve também tomar cuidado com a análise por múltiplos, como o P/L (preço sobre lucro), por exemplo, pois esse pode estar ancorado em estimativas de lucro defasadas. Um indicador baixo pode não necessariamente refletir uma oportunidade de compra, mas sim as dificuldades que a companhia terá para honrar seus deveres de curto prazo.

Aqui é preciso diferenciar os conceitos de solvência e liquidez. Uma empresa pode ter capacidade para gerar resultados para cumprir suas obrigações no longo prazo, mas a falta de caixa imediata pode levar a empresa à falência. Em outras palavras, uma empresa solvente pode estar ilíquida e não sobreviver.

Dois indicadores tradicionais, mas em desuso, podem ajudar na análise da situação financeira das companhias listadas, indicando se elas estão preparadas para essa queda repentina de caixa.

O balanço patrimonial de uma companhia é dividido em ativo e passivo. Os bens e direitos são alocados no ativo, enquanto as obrigações e dívidas, no passivo. Os ativos com maior liquidez são contabilizados no ativo circulante e os compromissos com vencimento em até um ano no passivo circulante (*).

O quociente de “liquidez corrente” compara o ativo circulante com o passivo circulante. Caso o indicador seja superior a 1, a companhia teria capacidade para honrar suas dívidas de curto prazo (123 meses) desde que monetizasse seus ativos. Mas isso não é simples. Estoques podem ser difíceis de vender. A rubrica de contas a receber pode apresentar problemas com inadimplência de clientes. Por isso, existe um indicador mais restrito que compara apenas os ativos com liquidez imediata (caixa e aplicações financeiras) com o passivo circulante: o quociente de “liquidez imediata”. Assim, indicador superior a 1 indica que todas as obrigações vincendas em até 360 dias podem ser honradas com o caixa da empresa.

Com base no sistema de análise fundamentalista S&P Capital IQ, selecionei todas as companhias não financeiras do IBrX, índice que engloba as companhias mais capitalizadas da bolsa. Com base no último balanço disponível (setembro ou dezembro de 2019), calculei o índice de liquidez corrente e o de liquidez imediata. Das 88 companhias, 54 (61%) possuíam liquidez imediata superior a 1, o que mostra que a maior parte das companhias está preparada para atravessar esse momento. As medianas do quociente de liquidez imediata e corrente foram de 1,14 e 1,47, respectivamente, para o universo das empresas do IBrX.

Das empresas que apresentaram indicador inferior a 1, as concessionárias de telecomunicações (TIM e Telefonica), de saneamento (Sabesp e Sanepar) e de energia elétrica (Engie, Cesp, Cemig, CPFL e Light) tendem a apresentar queda menos significativa do faturamento, pois fornecem serviços essenciais. Logo, esse indicador deve ser relativizado.

Vale, Petrobras e Ambev também possuem indicador inferior a 1, mas possuem baixo endividamento. A Vale, inclusive, já teve liberado linhas de crédito rotativo de US$ 5 bilhões para reforçar o caixa, enquanto a Petrobras acessou US$ 8 bilhões, e depois mais R$ 3,5 bilhões.

Empresas alavancadas (dívida líquida superior a 2 vezes) e com indicador de liquidez imediata inferior a 1 devem ficar no radar, como Eletrobras (mostrando que a capitalização pretendida pelo governo é importante para a solvência da companhia), BRF, CSN, Gol e Azul (além do baixo caixa, o setor deve ser um dos mais impactados pela crise), Braskem, Petro Rio, BR Malls, Movida, Ecorodovias, Via Varejo, Pão de Açúcar, SLC, BR Malls, JBS e Iochpe-Maxion.

Fiz a mesma análise para as companhias não financeiras do índice small caps (SMLL). Será que essas empresas, por serem de menor porte, apresentaram resultado pior? Desse grupo, 32 companhias fazem parte tanto do IBrX quanto do SMLL. Expurgando essas empresas, as medianas do quociente de liquidez imediata e corrente foram surpreendentemente superiores às do IBrX, 1,5 vez e 2,1 vezes, respectivamente.

As empresas do SMLL, e não integrantes do IBrX, que apresentaram indicador de liquidez imediata inferior a um foram Camil, IMC, AES Tiete, Gafisa, Helbor, Wiz e Taurus.

Empresas de alimentos como Camil, BRF e JBS não devem ter suas receitas tão impactadas, o que pode mitigar o fato de terem quociente de liquidez imediata inferior a 1 e dívida.

O estudo parece indicar que as empresas brasileiras listadas preferem trabalhar com nível de caixa mais robusto. Contribuiu ainda para isso as ofertas primárias recentes feitas por diversas empresas como Log-In, Magazine Luiza e Linx, o que mostra a importância do mercado de capitais para a economia brasileira. Esse estudo foi feito para as companhias de capital aberto. As de capital fechado, especialmente as pequenas e médias, vivem outra realidade e devem ser bastante impactadas pela crise.

Enfim, uma boa notícia em um período conturbado.

(*) Existem exceções. Companhias de indústrias com ciclo operacional longo, como a naval, podem apresentar, no passivo circulante, obrigações com vencimento superiores a um ano.

Fonte: Valor Investe